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Estudo por Evandro Vieira Ouriques

Psicopolítica, Tradição e Cultura1 como um Modo da Natureza:

um Estudo Comparativo entre Gandhi e Comunicação Distribuída

Psicopolítica, Tradição e Cultura como um Modo da Natureza: um Estudo Comparativo entre Gandhi e Comunicação Distribuída

Psychopolitics, Tradition and Culture as a Way of Nature: A Comparative Study between Gandhi and Distributed

Communication Evandro Vieira Ouriques*

Ao meu amadíssimo pai, Fernando Nunes Ouriques

“Com demasiada frequência, pessoas e grupos interessados em paz e em ‘não-violência’ têm se dedicado a examinar com sentimentos e intuição situações nas quais teria sido melhor aplicar, de modo vigoroso, o intelecto. A falta de rigor intelectual não apenas gera resultados deficitários, como ajuda a levar ao descrédito os esforços para considerar e transformar políticas alternativas em lutas não-violentas.” (Sharp, 2003:18)
“…if there is sufficient non violence developed in any single person, he should be able to discover the means of combating violence, no matter how wide-spread or severe, wit hin his jurisdiction. I have, repeatedly admitted my imperfections. I am no example of perfect ahimsa. I am evolving.” (Gandhi2 ,

Recebido em 02/09/2011. Aprovado em 21/11/2011.

 

Evandro Vieira Ouriques
Doutor em Comunicação e cultura pela UFRJ. Supervisor de Pesquisas de Pós-Doutorado em Estudos Culturais, PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea.UFRJ e Coordenador do NETCCON. Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência. Escola de Comunicação. UFRJ. http://www.mkgandhi.org/journalist/nonvio_vio.htm 1938)

 Resumo

Este artigo avança o entendimento de que apenas uma perspectiva psicopolítica aberta epistemicamente à sedimentação das tradições permite a superação efetiva do privilégio epistêmico que move as teorias do progresso e a irresponsabilidade de seus resultados psíquicos, sociais e ambientais, apoiadas que são por sua replicação na Academia através da teoria da escolha racional e seus deslocamentos pós-modernos que, ao restringir a política e a razão humana à abstração reificada do mercado e à ideia da escassez social, fazem com que o conhecer e o agir se tornem reiterar o que se vê. Investiga-se aqui como a filosofia política de Mohandas Karamchand Gandhi, ao sedimentar interculturalmente tradições das perspectivas civilizatórias da Índia e do Ocidente pré ou não-moderno, está centrada na razão cognitiva e axiológica exercidas no controle do processo de formação da vontade, condição imperativa para a livre atividade política como demandada pela comunicação distribuída, sustentabilidade e cooperação; somente a descolonização que a agência individual faça em seu próprio território mental permite a configuração de novas, coletivas e soberanas vidas, carreiras, políticas, negócios, programas e projetos.Para isto recepciona-se trabalhos de autores diversos, que apresentam sincronicidade relevante, entre eles André Mattelart, Ashis Nandy, Boaventura de Souza Santos, Bruno Sciberras de Carvalho, Néstor Garcia Canclini, Henrique Antoun, Frantz Fanon, Joel Birman, Martín-Barbero e Terry Eagleton.

This paper advances the understanding that only a psychopolitics perspective,epistemically open to the sedimentation of traditions, allows overcomingthe effective epistemic privilege that moves the theories of progress andthe irresponsible of their psychic results, social and environmental, that aresupported by the Academy through its replication of  rational choice theory  and its post-modern movements that restrict the political and human reasonto the reified abstraction of the market and to the idea of social scarcity, makeknowing and acting become just to repeat what it’s seen. It is investigatedhere how the political philosophy of Mohandas Karamchand Gandhi, in settingup interculturally traditions from civilizing perspectives of India and the Westpre-modern or not, focuses on cognitive and axiological reason exercised incontrolling the formation process of the will  mandatory requirement for free political activity as demanded by the distributed communication, cooperation and sustainability ; only decolonization that individual agency do in his ownmental territory allows the configuration of new, collective and sovereign lives,careers, politics, business, programs and projects. For this purpose, the articleworks with many authors who have relevant synchronicity, among them AndréMattelart, Ashis Nandy, Boaventura de Souza Santos, Bruno de CarvalhoSciberras, Nestor Garcia Canclini, Henrique Antoun, Frantz Fanon, Joel Birman,Martín-Barbero and Terry Eagleton.


 

1.-

O objetivo deste artigo é contribuir, no contexto do grupo de críticos do Ocidente moderno, para a superaçãodo privilégio epistémico vale dizer da colonização do território mental  (do fluxo de pensamentos, afetos e percepções) (Ouriques, 2009b), que move as teorias do progresso (Ouriques, 2009a, 2010b) através da força globalizante do estado mental  (Mattelart, 2003; Sadock,2009) chamado capital, com o apoio de uma visão científica e do mainstream mediático e pedagógico, eles mesmosa serviço desse estado mental, em missão que se supõe“civilizatória”, apesar de ser apenas um modelo de maximizaçãode oportunidades pessoais: a da teoria da escolha racional ,que, no pensamento liberal da Europa no séc. XVII e mais adiante do “utilitarismo”, entende a razão apenas como instrumental, quando a complexidade da experiência humana é definida de maneira reduzida e absoluta por uma constancia irreprimível de desejos, e posta, como “máquina individual”, a obter resultados por meio do cálculo frente a uma realidade que então se entende de escassez de recursos. Esta mentalidade, da qual vive-se hoje talvez o clímax, “afaz negligenciar a razão cognitiva ou axiológica fundamentada em princípios ou teorias sociais” (Carvalho, 2008:163), às quais logo voltarei. Como bem diz Nicholas Dirks: “Poderíamos nos tornar tão cúmplices dos deslocamentos da pós-modernidade que deixaríamos de reconhecer as continuidades informais entre o passado colonial e a atual nova ordem mundial?” (Dirks 1992:5); ou seja, seríamos capazes de ignorar ou subestimar suas continuidades psicopolíticas em nossos próprios territórios mentais, vale dizer no fluxo de nossos pensamentos, afetos(sentimentos, emoções, “coração”) e percepções (sensações,intuição, etc.)?A vida de Mohandas Karamchand Gandhi prova a potência política radical de uma agência individual , diante da estrutura social  e imersa na multidão, quando ela é movida pelas citadas razão cognitiva e axiológica. Aproximando a crítica da teoria da escolha racional feita por Bruno Sciberrasde Carvalho, digo que é esta a opção que Gandhi faz: ele aceita “uma teoria ordinária pelo simples fato de que lhe parece justa, mesmo que ela não tenha relação com seus interesses pessoais” (Carvalho, 2008:163), ao mesmo tempo em quepercebe frequentes articulações desta teoria ordinária coma tradição, considera seu próprio potencial de autonomia, questiona de forma criativa as condições presentes, recusa-se a “entender o movimento histórico de uma forma determinada a priori” ( op. cit.:31) e age na abertura reflexiva existente “entre a esfera da agência individual e (…) [a] estrutura social (…) – até mesmo no ambiente competitivo de compartimentalização da racionalidade” ( id.:273).

É importante lembrar, como diz Carvalho, que é justamente a consideração do potencial de autonomía “o contraponto à expectativa da escolha racional de padronização da ação política e o fundamento da percepção analítica que recusa entender o movimento histórico de uma forma determinada a priori” ( id.:31). Portanto, é assim que o estímulo maior para mudar a fonte de referência do ato decisório, que determina a ação, é a clareza tangível dos resultados dos séculos de teorias do progresso ,que configuram a a irresponsabilidade psico-político-socio-econômico-ambiental, aliada aos impasses teóricos e práticosdos movimentos de libertação, neles incluídos a economia política, por basear-se também na tríade evolução/progresso/desenvolvimentismo, e por sua incapacidade de explicar, por estar compromissada apenas com a economia, o desafio da interconexão demandada pela sustentabilidade; e também os estudos culturais , quando comprometidos com as ilusões dopós-modernismo. Em relação aos  estudos culturais , vale “uma observação sinistra” (Eagleton, 1998:130):

O conjunto de sua obra acerca do racismo e da etnicidade,da paranóia de pensar a identidade, dos perigos da totalidadee do medo da diferença: tudo isso, junto com seus insights aprofundados sobre as artimanhas do poder, sem dúvida revelar-se-ia de considerável valor. Mas seu relativismo cultural e seu convencionalismo moral, seu ceticismo, pragmatismo e bairrismo,seu desagrado com as ideias de solidariedade e organização, sua falta de qualquer teoria adequada de ação política: tudo isso ia depor muito contra ele. No confronto com seus adversários políticos, a esquerda, hoje mais do que nunca, precisa de sólidos fundamentos éticos e mesmo antropológicos: é provável que nada menos do que isso nos possa suprir dos recursos políticos quenecessitamos. E, nessa área, o pós-modernismo acaba sendo mais parte do problema do que da solução. ( op. cit.: 130)

É neste sentido que é decisivo, portanto, o entendimento da filosofia política proposta e praticada por Gandhi, não para escrever história, mas para identificar recursos políticos, que são sempre culturais e psíquicos (Nandy, 2001a), portanto psicopolíticos no sentido diferenciado aqui usado, capazes de intensificar a participação social libertadora de forma geral e, em especial, a da comunicação distribuída (Antoun, 2008), face tanto ao crescente “monitoramento,classificação e controle nos dispositivos de vigilância digital” (Bruno,2008:169) quanto à complexa gestão de si, sempre uma geso da mente (Ouriques, 2007, 2009c), exigida à agência individual  paraque ela desloque-se da atitude consumidora para a atitude de usuário, que implica em autonomia. Esta gestão de si é da dimensão de uma psicopotica diferenciada, como disse, que fusione psicanálise, psicologia,estudos coloniais e também tradição (OURIQUES, 1975, 1992,2002, 2006, 2007, 2009a, 2009b, 2011), em especial em seus imensos recursos comprovados de autoconhecimento, para que seja possível experienciar de maneira não-dualista subjetivo e objetivo,tudo junto e misturado, como fez Gandhi, cujo segundo livro que mais leu depois da Bhagavad  Gītā foi a Bíblia, cujo Sermão da Montanha o inspirou fortemente na adoção da não-violência  (NANDY, 2011b:128): Tendemos a pensar o subjetivo como pertencendo ao self ,e o objetivo ao mundo. O subjetivo é uma questão de valor,enquanto o mundo é uma questão de fato. E como esses dois se juntam é, muitas vezes, um tanto misterioso. Ainda assim, uma das maneiras como convergem é no ato da auto-reflexão. Ou se prefere, nesse curioso salto mortal ou cambalhota para tras em que o self toma a si mesmo como objeto de conhecimento.A objetividade não é apenas uma condição fora do self . Naforma do auto-conhecimento, é a pré-condição de todo viverbem sucedido. Auto-conhecimento, fato e valor são questõesinseparáveis. (Eagleton, 2005:187) exatamente pelo esquecimento de que fato e valor  são inseparáveis é que as ciências da psiquê e as ciências do social ainda estão muito separadas. O que resulta com que seja muito mais frequente e comum do que gostaríamos o fato que indivíduos, grupos, redes, movimentos e organizações apresentem atitudes antidemocráticas na maneira como conversam internamente,articulam suas ações intersetoriais e procuram mobilizar os segmentos sociais com os quais trabalham em favor da cidadania, da democracia,das políticas públicas sociais, das intervenções em comunidades e da responsabilidade socioambiental. Quando verificamos ao longo da História, e do presente, a extensão dos prejuízos causados por essas atitudes mentais para os movimentos de transformação social, podemos afirmar que se trata de uma alarmante pandemia no território mental, que pode ser superada apenas pela re-ligação dos saberes sobre a sociedade com aqueles sobre a economia psíquica dos indivíduos. (Ouriques, 2009:78)

Como lembra Antoun,

Um exemplo significativo pode ser visto através do colapso do tradicional grupo de discussão formado para organizar os congressos hackers da série Hope, em 2001/2002, sob o impacto dos efeitos do atentado. Até o congresso de 2000, a lista de discussão capitaneada pelo grupo 2600 mantinha uma coesão em suas posições, mas, após o atentado, o grupo rachou, e os hackers a favor de cooperar com a guerra e os EUA contra os fanáticos e os comunistas vão se chocar violentamente com os libertarianos anárquicos e os vegetarianos indies contrários à guerra e ao Governo Bush. A lista naufragou em meio ao ódio, racismo e intolerância generalizados. (Antoun, 2008:18)

 
Já Gandhi e sua filosofia política operam de forma oposta, para mim na perspectiva psicopolítica da maneira como a sustento, que permite, de fato, via o autoconhecimento em rede,o controle em rede do território mental , o autogoverno:
A beleza de Gandhi é que ele pratica o que prega. Poucos meses antes de seu assassinato em 1947, Gandhi comentou que a vida dele era a sua mensagem. Em sua autobiografia, ele se revela com todas as suas imperfeições na esperança de que seus “experimentos coma Verdade” encorajem outros na realização de seus selfs. (Bhaneja,2010:109)
Gandhi é assim exemplo vivo do que eu disse em outro artigo, quando falei sobre a orientação básica de meu trabalho,seguindo a sugestão de André Mattelart que mostra que a liberdade política não pode mais ser apenas o exercício da vontade, mas passa -necessariamente- pelo domíniodo processo de formação da vontade, de maneira a que, como tenho sustentado, o desejo hoje mediatizado no reconhecimento pelo capital, vale dizer no reconhecimento pelo outro,seja, ao contrário, e a um só tempo, liberdade e vinculação socio ambiental . (Ouriques, 2006:33)
Pois,

O sujeito da modernidade afirma sua vontade prometéica num vácuo de sua própria criação, vácuo que reduz a nada o funcionamento da própria vontade. Ao subjugar o mundo à sua volta, a vontade abole todos os constrangimentos à sua própria ação, mas, ato contínuo, erradica seus projetos heróicos. Quando tudo é permitido, nada tem valor. O self feito à imagem de um deus é o que mais se angustia na solidão.(Eagleton, 2005:294) Sob perspectiva distinta, a gestão de si feita porGandhi é a escolha continuada pela superação de si, do descondicionamento, por iniciativa da vontade, exercício e empreendimento de

autonomía (Castoriadis, 1975, 1999), e istofeito não sob as formas cross-cultural da teoria social mas como opção por valores universais (Nandy, 2011b:127), básicos para a comunicação inter e a transcultural. O grande ativista político Gandhi
inspira-nos ao focar a n e multi dimensão do fluxo de nossos estados mentais para eliminar dele a uni dimensão da instrumentalidade da competição esportiva e do empreendedorismo empresarial do modo hedonista globalizante de estar no mundo. A capacidade de tal perspectiva psicopolítica provocar mudança na agência individual  e na multidão é percebida, claro, pelos velhos mediadores do coronelismo mediático (Santos, 2011), pelo caráter panóptico da internet sublinhado por Marcos Dantas, pelos estudos avançados de neurociência para fins políticos e mercadológicos e pela história da guerra em sua terceira e atual geração: a da guerra psicológica, que tem, como um de seus fundamentos, a disciplina de gerenciamento da percepção, dirigido, essencialmente, para o uso da informação com o fim de confundir, decepcionar, desestabilizar e desbaratar uma população ou um exército adversário (…). O importante, nessa guerra, é a inserção de falsidades na percepção do adversário, prevenindo-se de que ele possa fazer o mesmo, e a adivinhação de seus segredos, garantindo um domínio na condução da ação pelo poder de decepção adquirido. (Antoun, 2008:13)
A história da guerra não utiliza o conceito operações subjetivas, mais uma razão das que sempre me fizeram ir além doconceito de subjetividade, mas sim operações psicológicas .De acordo com o CAC-United States Arms Combined ArmsCenter-Fort Leawenworth, Kansas, Estados Unidos, o conceito de inition/scope) de psychological operations diz respeito a

operações planejadas para transmitir informações e indicadores selecionados para o público estrangeiro para influenciar suas emoções, motivações, raciocínio objetivo e, por fim o comportamento de governos estrangeiros, organizações, grupos e indivíduos; o objetivo é induzir ou reforçar atitudes e comportamentos estrangeiros favoráveis aos objetivos do emissor.

 
Para o major-general John Frederick Charles Fuller, consideradopelo alto comando militar norte-americano o escritor militar mais brilhante, estimulante, arrogante e causador de problemas (aggravating) do século XX, o único objetivo do soldado é harmonizar de maneira racional a mente com as leis militares:
“A razão é a forma mais elevada de consciência, ela extrai sua “substância” da memória e, à luz da imaginação, concentra-se em memórias de acordo com as condições do momento. Na guerra, como na paz, a razão é a faculdade de controle da dimensão mental. Todas as nossas ações conscientes emanam da razão, assim como todas as nossas atividades corporais emanam da força física, e, (…) uma vez que o poder militar é controlado por leis semelhantes as que regem a força, conseqüentemente o único objetivo do soldado é harmonizar a sua mente para ofuncionamento dessas leis. (Fuller, 1926:469)”


2.-

A pesquisa e a aplicação de reservas filosóficas presentes na perspectiva civilizarida Índia, como prefere denominar lucidamente Dilip Loundo, no meu caso o pensamento-ação sintetizado e posto em prática por Gandhi, em aproximação intercultural, comodito, com elementos do Ocidente pré e não-moderno, é fazer vigorar a aliança epistêmica e política Sul-Sul, que permite a necessária reinvenção do pensamento e da ação, de maneira a reverter o citado quadro de colonização ou neocolonização do território mental ,colonizações em relação às quais muitos agradecem por acreditarem estar sendo levados para o desenvolvimento e por isto recusam o envolvimento id., 2009a, 2010b).

Frantz Fanon, como se sabe um dos intelectuais que mais trabalhou o tema da colonização política, ideológica e cultural, disse ao encerrar seu libro Os Condenados da Terra, prefaciado por JeanPaul Sartre:

“se queremos que a humanidade avance com audácia, se queremos elevá-la a un nível distinto do que lhe impôs a Europa, então temos que inventar, temos que descobrir. Se queremos responder à esperança de nossos povos, não tem que fixar-se somente na Europa. Além do que, se queremos responder à esperança dos europeus, não temos que refletir uma imagem, ainda que ideal, de sua sociedade e de seu pensamento, pelos que sentem de quando em quando uma imensa náusea. Pela Europa, por nós mesmose pela humanidade, companheiros, tem-se que trocar de pele,desenvolver um pensamento novo, tratar de criar um homem novo. (Fanon, 1983:139)
Ora, sabemos bem que a ciência política, no conjunto das ciências sociais, muitas delas bastante conservadoras, candidata-se,como bem diz Renato Lessa sobre o libro  A escolha racional como teoria social e política: uma interpretação crítica, de BrunoSciberras de Carvalho, a ocupar o segmento mais conservador: primeiramente através da auto intitulada
revolução behaviorista,vale dizer de uma revolução na coleta de dados, quando rompeu com o campo das humanidades, e adiante, a partir dos anos 80 e 90, quando rompe com a tradição das ciências sociais, ao passar a entender as instituições como entes autárquicos, dotados de lógica irredutível a causalidades “exteriores”, sejam elas sociais,históricas ou, muito menos, culturais.

Parafraseando Ashis Nandy (Nandy, 2011a:118), este fechamento alimenta o axioma de que a América Latina, Ásia e África são o que o Ocidente foi no passado e o que o Ocidente é hoje, e o quea América Latina, Ásia e África serão no futuro. Os resultadose as motivações de tal ciência do poder, com consequências sistêmicas nas ciências sociais, sincrônicos à mentalidade globalizada de “desenvolvimento” (em verdade de sequestro de futuro), são bem tangíveis. Ladislau Dowbor nos lembra de dados decisivos,espelhos da episteme que supõe ser perda de liberdade a decisão de dominar, pela gestão da mente, o processo da vontade:

Não conseguimos juntar 6 bilhões de dólares para universalizar o acesso básico à educação, mas conseguimos 8 bilhões de dólares para cosméticos nos EUA. Para água e saneamento básico seriam necessários 9 bilhões de dólares anuais suplementares, que não se conseguem mas se gasta 11 bilhões em sorvete. Para a saúdere produtiva da mulher não conseguimos os 12 bilhões de dólares necessários, mas para perfume na Europa e EUA a soma chegaa 12 bilhões. Para a saúde básica e nutrição das pessoas são necessários 13 bilhões de dólares que não alcançamos; porém conseguimos 17 bilhões para alimentar animais de estimação. E vejam, para cigarros na Europa é possível conseguir 50 bilhões; para bebida alcoólica a soma atinge 105 bilhões; os narcóticos no mundo consomem 400 bilhões; e gasto militar, a maior das cifras,no mundo hoje, chega a 780 bilhões de dólares. São cifras de uns 15 anos atrás. De lá para cá mudamos muito, os gastos em drogas ultrapassam o trilhão de dólares e os gastos militares ultrapassam1,5 trilhão em 2008. Esses eixos dão a medida da desarticulação do processo. Séculos atrás, quando éramos pequenos produtores,a competição tinha um certo sentido, mas hoje, com o poder das tecnologias e essa população, manter o sistema baseado no faroeste econômico é suicídio. (Dowbor, 2010).
Com este inequívoco quadro quantitativo em mente, ao que se soma o fato que o padrão de consumo dos segmentos ditos desenvolvidos dos Estados Unidos e da Europa já consome 1,5planetas – imagine se tal padrão fosse distribuído para toda a população como insiste a esquerda desenvolvimentista sem enfrentar o aburguesamento das Políticas Públicas Sociais e a urgente revisão psico-social do conceito ‘riqueza’.
É decisivo lembrar que a Academia tem sofrido historicamente pressões que pautam suas investigações, tornando muitas vezes os saberes em dissenso consentido , que não modificam tais condições de vida, e que, pelo contrário, acabam por legitimá-las:  “a rebelião se torna pouco a pouco uma questão de aprendera prática radical correta de acordo com textos produzidos nascidadelas globais do conhecimento” (Nandy, 2003:118).
[…] eles produzem não apenas modelos de conformidade, mas também modelos de “dissidência oficial”. É possível hoje ser anti-colonialista de uma forma que é especificada e promovida pela visão de mundo moderna como “boa”, “saudável” e “racional”. Mesmo quando na oposição, esta dissidência permanece previsível e controlada. Também é possível hoje optar por um não-Oeste ,que em si é uma construção do Ocidente. ( op. cit.:XII)

Este epistemocídio é tão abrangente que “se alguém no Sul tenta defender o passado como um depositário de recursos culturais e tradições de conhecimento, isto torna-se nacionalismo cultural e romantismo. O único passado legítimo na cultura global do senso comum é o passado helênico” (op. cit:. 117). Dito de outra maneira, o mundo pós-colonial é aquele em que podemos viver depois do colonialismo, mas nunca sem ele. O colonialismo continua a viver sob maneiras que talvez tenhamos apenas começado a reconhecer. (…)Estamos diante dos deslocamentos extraordinários do colonialismo para os nossos sentidos de Self e de sociedade. (Dirks, 1992:23)

Trata-se assim de uma desmemoriação provoca da epistemica mente no território mental , que usa a história para achatar o passado transformando-o em um campo uniforme para o jogo de um punhado de teorias do século XIX de progresso e excluir as comunidades que se recusam a historicizar suas mito poéticas que mantêm abertos os seus passados e servem como constituintes de seu Self. (Nandy, 2011a:117)
 
Lembrando, com Edgard Morin, que “nós subestimamos a cegueira em que nos encontramos”; acompanhemos, por gentileza, o argumento de Nandy:
“Tornou-se mais e mais aparente que os genocídios, eco-desastres e etnocídios são apenas a sombra das ciências e tecnologias corruptas e psicopatas casadas com as novas hierarquias seculares, que reduziram as grandes civilizações ao status de um conjunto de rituais vazios. As forças antigas da ganância humana e da violência, reconhece-se,conseguiram apenas encontrar uma nova legitimidade nas doutrinas antropocêntricas da salvação secular, nas ideologias de progresso, normalidade e hiper-masculinidade, e nas teorias de crescimento cumulativo da ciência e da tecnologia. (Nandy, 2011a:X)


3.-

Em um de seus artigos, Ravindra Varma, presidente da Gandhi Peace Foundation, lembra que existem pelo menos quatro crenças sobre os códigos morais e éticos. Na primeira acredita-se que eles têm origem divina e que portanto são mandamentos; na segunda, entende-se que a violação de tais mandamentos implica na ira divina e atrai assim o castigo, o que cria uma relação de troca entre obediência e benesses (“são os frutos do Pu ya [mérito alcançado ao se viver eticamente] que os humanos buscam e não o Pu ya em si. Varma, 2003:20); na terceira, tais códigos têm a ver apenas com possíveis aspirações religiosase espirituais, sem terem nada a ver com a vida mundana; e na quarta, acredita-se que na medida em que tais códigos seriam divinos eles não precisariam ter suas bases lógicas investigadas.

Gandhi não compartilhava de nenhuma dessas crenças. Para começar ele não acreditava que Deus fosse uma pessoa. A seu ver, a Verdade era Deus. Ela não era uma pessoa, embora se manifestasse em tudo. (…) Para ele, portanto, os ‘mandamentos’ éticos não tinham origem divina. Além do mais, não acreditava em revelações especiais vindas de um Deus “pessoal” e dirigidas a um indivíduo escolhido. Também não acredita em escrituras sacrossantas e inquestionáveis. Mesmo as escrituras (…) só deveriam ser aceitas se passassem na prova da “razão treinada”, da consciência e da moralidade. (…) para Gandhi a verdade é a lei que formata e mantém o Universo. Daí se segue que nada pode existir, manter-se ou prosperar se não estiver em conformidade com a Verdade ou a lei. (Varma, 2003:21)

Desta maneira, a  verdade pela qual Gandhi referencia sua ação no mundo, a lei que formata e mantém o universo, corresponde,sob minha perspectiva, ao conceito amor encontrado por Humberto Maturana e Francisco Varela (Maturana & Varela,2001; Maturana & Verden-Zoller, 2004) como a base do biológico e do social, portanto como o

envolvimento total  com o outro , empiricamente abandonado pelas teorias do progresso. Conhecemos tal verdade
por seus outros nomes: liberdade,acolhimento, direito à comunicação, justiça para todos, direitos humanos, responsabilidade socioambiental, transparência, políticas públicas sociais, colaboração, participação, comunicação distribuída, paz, cultura de comunicação, etc.
As normas éticas de Gandhi não se baseiam na revelação divina,mas nas Leis da Natureza, que podem ser decifradas pela mente humana por meio da experiência, da razão e da intuição. Essas Leis determinam a existência (…). Seguí-las garante a harmonia com o ambiente. Não pode existir harmonia se não houver justiça para todos. (Varma, 2003:28)
Ainda são muitos os que desconsideram pós-modernamente amor e a Natureza enquanto viva como uma questão central para as ciências sociais e para a vida prática, malgrado seja o amor  o estado mental mais atributado aos produtos e serviços globalizados e seja a Natureza, no corpo da humanidade e no corpo da Terra, o alvo das maiores obsessões e agressões.Terry Eagleton, do qual bem sabemos sua legitimidade para falard as conquistas e das ilusões do pós-modernismo, mostrou em 2003, de forma cristalina, que:
“Tem sido acanhada [a teoria cultural] com respeito à moralidade e à metafísica, embaraçada quando se trata de amor, biologia, religião e a revolução, grandemente silenciosa sobre o mal, reticente a respeito da morte e do sofrimento, dogmática sobre essenciais,universais e fundamentos, e superficial a respeito da verdade, objetividade e ação desinteressada. Por qualquer estimativa, essa é uma parcela da existência humana demasiado grande para ser frustrada. Além disso, esse é um momento bastante embaraçoso da história para que nos achemos com pouco ou nada a dizer sobre questões tão fundamentais. (Eagleton, 2005:144)”.
Se queremos portanto libertar o pensamento da ortodoxia, de maneira a aprofundar a mudança imensa em andamento, precisamos entender que são estas questões, classicamente “não-políticas” (até aqui compreeendidas como estritamente “psíquicas” e “privadas”) que são em verdade as que podem por ou aprofundar a revolução em movimento, revolução que, como bem dizia Deodato Rivera, sempre é uma revolição (Rivera,2008), ou seja, uma revolução da vontade. Concordo com meus amigos e colegas da economia política de que o central é a economia. Porém, para mim, o central é uma determinada forma de
economia: a economia psíquica, aquela queproduz, através do estado mental  que autoriza toda e qualquer decisão
(sempre uma ação psico-bio-política), e portanto toda possibilidade de servidão (Birman, 2006) ou de autonomia, pois,como bem mostra Joel Birman, “é preciso enunciar que a economia das pulsões equivale, no psiquismo, à economia política que regula o espaço social, na medida em que é a partir das relações de trocados objetos e da satisfação dos desejos”
(id, 1996:130) que tudo se dá.  É a  oscilação, opção e fixação do sujeito entre os polos narcísico alteritário
que determinam a qualidade colaboradora, distribuída e sustentável, ou não, da circulação das formas-conteúdo, e, assim,também das mercadorias:
…as formas autoritárias e violentas de poder (…), -onde se pode saquear o estado e considerar como sendo privado os bens público e coletivo-, conduzem [a economia psíquica, digo eu para o pólo narcísico (…) pondo entre parênteses as relações alteritárias. O pólo alteritário se dirige para uma região de sombras, esmaecendo-se nas suas linhas e cores, entrando em uma espécie de eclipse. Neste contexto a predação do corpo do outro [inclusive do corpo da Terra, acrescento eu] e a depredação de sua (…) [economia psíquica] se transformam em formas materializadas de ser e de agir das individualidades. Consequentemente, a perversão se institui como a maneira por excelência do usufruto dos bens e dos valores que circulam no espaço social. (…) Enunciar que a perversão é a forma fundamental para as individualidades se apropriarem dos bens e dos valores, para o usufruto do seu gozo, implica afirmar que não existe mais, neste contexto, a possibilidade de se estabelecer laços intersubjetivos alteritários e de se instituir relações de reciprocidade, isto porque o outro é sempre manipulado como sendo um objeto para as individualidades, reduzindo-se então a um mero fetiche para incrementar o gozo. (…) No âmbito das classes médias e das elites, a perversão do sujeito se transforma na estetizaçãoda existência (…). Nesta cultura não há mais lugar para certas coisas básicas da existência, como o amor, a amizade,o afeto gratuito e até mesmo o desejo. No nível das classes populares, impossibilitadas que estão estas individualidades de serem respeitadas nos seus direitos básicos como cidadãos e serem reconhecidas como tal, assiste-se à utilização crescente da violência como forma básica de tornar possível a sobrevivência,diante da violência instituída dos dispositivos de poder e das formas de ação das elites. (Birman, 1996:131)
Gandhi, claro, é outra filosofia política, nascida em outra episteme, dedicada ao descondicionamento do território mental. 

O vigor da reciprocidade, da ação desinteressada,vale dizer do amor e seus conexos, é o resultado da consciência, como dito, sim, pelo filósofo inglês DavidHume (de que quando se olha para dentro da própria mente não se encontra nada que seja puramente nós mesmos, em contraste com a percepção ou sensação de alguma outra coisa), mas compreendido sob outra perspectiva civilizatória. Este não-ser , que se para Eagleton é uma “lacuna sinistra e “ enervante vazio, para Gandhi é o justamente o território onde encontra a verdade, o amor, a entrega, a interdependencia de tudo e de todos face à criação, face à Vida, da qual a História, para esta episteme, faz parte. Sim. A episteme de dentro da qual fala Gandhi entende a

Cultura como um modo da Natureza , ao contrário da tradição helênica, na qual a Natureza é morta. Podemos ver aqui mais
uma vez como os estados mentais é que são, em verdade, objetivos.
Pensar, sentir e perceber a Natureza como morta resultou mais de dois milênios depois em termos a Natureza em grande parte morta ou severamente ameaçada de forma crescente, como disse, no corpo da Terra e no corpo das mulheres e dos homens.


O fato é que, ao sermos animais históricos, somos mais do que apenas História , pois somos ao mesmo tempo biológicos,
naturais, cósmicos. Com esta consciência instaura-se a possibilidade de viver no presente [“ao contrário do que Maiakovsky dizia, a alegria do futuro é preciso arrancá-la do presente” (Antoun, 2009:89)], de experienciar como vivem os lírios do campo, “dignos de imitação” (Eagleton, 2005:282), escapando do determinismo histórico que negocia futuros que aprofundam a desconexão das agências individuais do presente, capturando-as em uma “vida de desejo, que exaure nossa existência até o cerne” (op. cit.:282), esta vida de desejos que move a condição opressiva tão investigada pelos estudos pós-coloniais, e que reduz a vida ao estatuto de crônicas ligeiras e não de narrativas compatíveis com a superação da meta-narrativa do
regime de servidão, por exemplo mantido pela monocultura do consumo , no sentido de Luciane Lucas dos Santos, monocultura que se alimenta da mentalidade voltada para o futuro de que seríamos, como diz Eagleton, “um ainda-
não, mais que um agora” (id.).
Ora, afirmar que os “seres humanos são o curinga do baralho, a mancha escura no centro da paisagem, a glória, a graça

e o enigma do mundo” (id.:283) é manifestar onipotência, mesmo que disfarçada pela ironia como traço modernista, pois para que

“o sujeito possa funcionar efetivamente nas ordens da reciprocidade e da lei (…) ele tem de perder e relativizar a

onipotência que marca a sua estrutura básica de forma indelével. O que caracteriza esta onipotência é o fato de o sujeito acreditar que tudo que é bom é seu por direito e que o mal está sempre no outro e fora de si (…) [que] tudo o que é prazeroso está dentro do sujeito, e tudo aquilo que é desprazeroso está na sua exterioridade”. (Birman, 1996:125)
E mais:
“o sujeito acredita que pode impor os seus ideais e instituir a sua lei, não se submetendo a nada que lhe seja exterior. (…) que pode submeter os outros (…) sem que aqueles sejam reconhecidos na sua singularidade e na sua diferença. Enfim, o sujeito acredita piamente que é o Deus encarnado na terra, razão pela qual este registro psíquico é considerado como sendo da ordem da onipotência.” (id.)
Apesar de pontos de divergência para com algumas ideias de Eagleton, a quem admiro profundamente, volto a concordar
com ele quando afirma que “imortalidade e imoralidade são aliados muito próximos” (Eagleton, 2005:284), pois apenas a
morte , digo eu, é a prova definitiva de que a Cultura é um modo de ser da Natureza , esta essencialmente indomável e que
nos mostra o equívoco epistêmico de deixar-se dominar pelo desejo de tentar dominar a vida dos outros:
“aceitar a morte seria viver mais plenamente. Ao reconhecer que nossas vidas são provisórias, podemos relaxar nosso
apego neurótico a elas e assim vir a gozá-las muito mais. (…) se pudéssemos [e podemos, digo eu ] manter a morte em mente,
é quase certo que agiríamos com mais virtude do que agimos. Se vivêssemos permanentemente à beira da morte, é prováve que tivéssemos mais facilidade de perdoar os inimigos e refazer nossos relacionamentos. (id.)

 

Ora, Gandhi fez de sua vida exatamente o treinamento disso, o ensaio da absoluta autoentrega que a morte exige, e cuja
prática permite a construção daquela estrutura de autodoação recíproca a qual se referem Marcel Mauss e Godbout (Godbout,
1999) por exemplo, e cujo resultado é o exercício da livre atividade política, resultado do exercício de uma racionalidade
entendida como “uma forma concreta de discorrer e não um domínio transcendente voltado apenas para a manipulação de
bens materiais ou dos homens” (Carvalho, 2008:274). Como diz Godbout, “a absoluta autoentrega que a morte exige de nós só é tolerável se, de alguma forma, tivermos ensaiado para isso na vida. A autodoação própria da amizade é uma espécie de
petit mort , um ato com a estrutura interna do morrer.” (id.:285)
Ainda com Eagleton,
“O problema com os ricos é que a propriedade nos vincula ao presente e nos encasula contra a morte. Os ricos precisam
viver mais provisoriamente, e os pobres, com mais segurança. A combinação ideal seria viver com suficiência de bens, mas estar preparado para abrir mão deles. Isso é notavelmente difícil de realizar; mas tal sacrifício é, de fato, o que todos somos forçados a fazer, finalmente, sob a forma da morte.” (Eagleton, 2005:249)
Portanto, para sair da conformidade inconsciente ou consciente, é necessário praticar a fusão psíquico-político como experimentada por exemplo até as últimas consequências por Gandhi, quando sua gestão de si permitiu referenciar-se

pela razão cognitiva e axiológica, vale dizer, pela tradição sedimentando-a, no sentido, para mim, de Martín-Barbero. Pois

como bem diz Eagleton,
“Se, com muita frequência, conhecer o mundo significa atravessar complexas camadas de auto-decepção, conhecer a si mesmo envolve ainda mais disso. Somente pessoas excepcionalmente seguras podem ter a coragem de se confrontar dessa maneira, sem racionalizar o que desenterram e nem se deixar consumir pela culpa estéril. Só alguém certo de estar recebendo amor e confiança pode alcançar essa espécie de segurança. (…) valor e objetividade não são os opostos que tantos parecem pensar.” (Eagleton, 2005:187-188)
Nas palavras de Gandhi,
“o caminho da auto-purificação é duro e íngreme. Para alcançar uma perfeita pureza a pessoa tem que se tornar absolutamente livre da paixão no pensamento, fala e ação; tem que se elevar acima das correntes opostas do amor e do ódio, do apego e repulsa. Eu sei que eu não tenho em mim ainda esta tripla pureza, apesar da minha incessante busca constante por ela. É por isso que a glória do mundo não consegue atingir-me, apenas frequentemente picar-me. Dominar as paixões sutis é, para mim, mais difícil do que a conquista física do mundo pela força das armas. Desde o meu regresso à Índia tive a experiência das paixões adormecidas escondidas em mim. O conhecimento delas fez-me sentir humilhado mas não derrotado. As experiências e as experimentos têm-me sustentado e me dado grande alegria. Mas eu sei que tenho ainda diante de mim um caminho difícil de percorrer.” (Gandhi, 1940:268)


4.-

 

Vamos tratar um pouco mais, ainda que de forma sucinta, das consequências para a livre atividade política de uma outra relação com a morte, como Gandhi a praticou. Eagleton, mesmo falando do lugar europeu do medo da morte, e consequentemente de uma epistemologia dualista que o faz pensar que a identidade dele “está sob a guarda dos outros, e isso -por me perceberem [diz ele] através da densa trama de seus próprios interesses e desejos- jamais pode ser um guardar inteiramente seguro” (op. cit.:285-286), reconhece que “uma vez que as instituições sociais sejam ordenadas de tal forma
que a autodoação seja recíproca e irrestrita, seria menos necessário o sacrifício, no sentido abominável de alguns terem de renunciar à própria felicidade para o bem dos outros.” (id.: 285)
Pois se não-dualista fosse, como Gandhi, ele entenderia que a felicidade, de fato, é a felicidade de todos, uma vez que somos
apenas em rede, apenas em comunicação distribuída, pois inter- dependo inteiramente na linguagem,  n e multi dimensional, que sempre é comum, pois “somente no falar compartilhado [e, digo eu,na felicidade compartilhada] com eles que posso vir a significaro que quer que seja” (op. cit .: 286)
“as palavras são nodos de redes de coordenação de ações, não representantes abstratos de uma realidade independente de nosso quefazer. […] As palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar, mas projetam o curso do nosso quefazer. […] Os seres humanos, somos o que conversamos: esse é o modo como a cultura e a história se encarnam em nosso presente.”(Maturana,1997:105-106)

Eagleton refere-se em um momento à própria perspectiva civilizatória da Índia: “Essa não é apenas uma visão moderna;

é também parte do ensinamento do sábio budista Nāgārjuna, para quem o self não tem essência porque está ligado

à vida de inúmeros outros, sendo o produto de suas escolhas e condutas. Não pode ser separado dessa teia de significados”
(Eagleton, 285:286).
Lado a lado, a linguagem , que um dia acreditamos ser a nossa diferença face aos outros que chamamos de “animais”, e a
morte permitem aceitar a “pura gratuidade germinativa do mundo material” (id.:287-288), definição essa talvez das melhores de amor, vale dizer, da dádiva. Ser grato(a) por ela(e), celebrá-la(o) e, ao invés de desenvolver-se, devolver -se. Manter esta sequência mental como o foco prioritário, articulada com sua respiração, em autorreflexão; profunda, compassada; continuamente compassada, suspendendo “todas as distrações e (…) todos os automatismos mentais que dominam, ou, mais precisamente, constituem a consciência comum” (Eliade, 1997:53); território mental cada vez mais livre e autogerado; a vida viva; você-vida-viva, todo o corpo e a mente respiram; respiramos rede, que somos, respiramos em rede; identidade respiratória, pensamento respiratório, pois “as associações dispersam a consciência, as paixões a violentam, a ‘sede de viver‘ a trai ao projetá-la para fora” (id.). Isto é psicopolítica, como a sustento. É sólido a desmanchar no ar, sim, mas também
é ar a se adensar em pedra.
Voltemos, por gentileza, a Eagleton, que poderia ser, nesta citação, Gandhi:
“Se sou intratável para comigo mesmo, dificilmente posso exigir maleabilidade instantânea de outros. Somente ao não se maltratar, ao aceitar que não tem nenhum domínio final sobre si (…)- podem as relações com você mesmo ser um modelo para lidar com os outros. Não desejaríamos ser tratados por algumas pessoas da maneira como elas tratam a si mesmas. Isso significa renunciar à letal ideologia da vontade. (op. cit.:287)
Como sabemos, os problemas que continuam na pauta, como no tempo de Gandhi, são originados pela vontade que move a
mentalidade industrial europeia, vale dizer o Ocidente moderno, a teoria da escolha racional. E o que é o Império americano e
a ascensão da China senão desdobramentos desta mentalidade? Testemunhar a fase atual da Europa, atacada pelo espírito
capitalista em rede , desprovido de toda generosidade, por exemplo, nos acontecimentos de fevereiro de 2012, e a Rio+20,
traz-me palavras de Frantz Fanon em 1961:

 

“Compañeros: hay que decidir desde ahora un cambio de ruta. La gran noche en la que estuvimos sumergidos, hay que sacudirla y salir de ella. El nuevo día que ya se apunta debe encontrarnos firmes, alertas y resueltos. Debemos olvidar los sueños, abandonar nuestras viejas creencias y nuestras amistades de antes. No perdamos el tiempo en estériles letanías o en mimetismos nauseabundos.” (Fanon, 1983:137)

 

Como “a história moderna tem sido uma narrativa criteriosa sobre o bem estar material, valores liberais, direitos civis, política democrática e justiça social, e um pesadelo brutal” (Eagleton, 2005:244) e “os pragmáticos obstinados é que são os sonhadores simplórios, e não os descabelados esquerdistas” (id.), o desafio portanto não é falar sobre a transformação; mas sobre as formas pelas quais e nas quais esta interrupção e mudança de relato podem de fato realizar-se.
Néstor Garcia Canclini tem razão quando sintetiza que

“entricheirar-se na alta cultura para desqualificar a mercantilização, a rapidez sem profundidade e a obsolescência

desmemoriada é algo que fizeram pensadores como Teodor W. Adorno e José Ortega y Gasset, ambos questionados por seu
aristocracismo. Por outro lado, a pretensão de encontrar em algum setor oprimido a chave das contradições capitalistas e
colonialistas tem precedentes em Georg Lukács, que atribuiu à classe operária esse papel privilegiado na epistemologia e
na política, em Franz Fanon e outros que imaginaram esse ator contestador situado nos países coloniais, e em inúmeros
doutrinários e líderes vanguardistas de esquerda: parece-me redundante insistir no parcial fracasso desses diagnósticos
e na conhecida refutação de suas inconsistências teóricas.” (Canclini, 2003:171)
A saída está no descondicionamento do território mental. O fato é que a globalização e sua potencialidade massificadora não se assemelha ao fim da história anunciado por Francis Fukuyama, a geografia não acabou, como um dia Paulo Virilio celebrou, e o mundo continua com centro e margens, como o movimento Occupy bem o sabe. Precisamos do imprevisto e outros modos de imaginar a globalização, quando a maior parte das “surpresas [ então esterilizadas como inovações, lembro eu] são exigências do mercado, da sua necessidade de acelerar a obsolescência do já conhecido para aumentar as vendas” (id.), e crescem os escândalos do agravamento da pobreza, da concentração da riqueza, da devoção desenvolvimentista, da corrupção, do crime, das drogas e da violência sob todas as formas.
A filosofia política de Gandhi, quando adaptada e aplicada hoje, é, sob a perspectiva que sustento da psicopolítica, esta surpresa. Inovação é inovar o olhar sobre a sociedade; inovar a pesquisa; inovar a ação política, vale dizer escapar da expectativa, deliberadamente descondicionar-se da escolha racional de padronização da ação política. Isso demanda uma radical transformação do território mental. Assim é factível e seguro compreender a complexidade epistêmica envolvida na frase mais pronunciada durante o movimento de libertação da Índia, “Swaraj hamara jannasidh adhikar hai”(expressão em
hindi), e que continua absolutamente atual. Ou seja, “o autogoverno é nosso direito de sangue” (Shiva, 2003:11).

 

 

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