Psicopolítica, Tradição e Cultura1 como um Modo da Natureza:
um Estudo Comparativo entre Gandhi e Comunicação Distribuída
Psicopolítica, Tradição e Cultura como um Modo da Natureza: um Estudo Comparativo entre Gandhi e Comunicação Distribuída
Psychopolitics, Tradition and Culture as a Way of Nature: A Comparative Study between Gandhi and Distributed
Communication Evandro Vieira Ouriques*
Ao meu amadíssimo pai, Fernando Nunes Ouriques
“Com demasiada frequência, pessoas e grupos interessados em paz e em ‘não-violência’ têm se dedicado a examinar com sentimentos e intuição situações nas quais teria sido melhor aplicar, de modo vigoroso, o intelecto. A falta de rigor intelectual não apenas gera resultados deficitários, como ajuda a levar ao descrédito os esforços para considerar e transformar políticas alternativas em lutas não-violentas.” (Sharp, 2003:18)
“…if there is sufficient non violence developed in any single person, he should be able to discover the means of combating violence, no matter how wide-spread or severe, wit hin his jurisdiction. I have, repeatedly admitted my imperfections. I am no example of perfect ahimsa. I am evolving.” (Gandhi2 ,
Recebido em 02/09/2011. Aprovado em 21/11/2011.
Evandro Vieira Ouriques
Doutor em Comunicação e cultura pela UFRJ. Supervisor de Pesquisas de Pós-Doutorado em Estudos Culturais, PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea.UFRJ e Coordenador do NETCCON. Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência. Escola de Comunicação. UFRJ. http://www.mkgandhi.org/journalist/nonvio_vio.htm 1938)
Este artigo avança o entendimento de que apenas uma perspectiva psicopolítica aberta epistemicamente à sedimentação das tradições permite a superação efetiva do privilégio epistêmico que move as teorias do progresso e a irresponsabilidade de seus resultados psíquicos, sociais e ambientais, apoiadas que são por sua replicação na Academia através da teoria da escolha racional e seus deslocamentos pós-modernos que, ao restringir a política e a razão humana à abstração reificada do mercado e à ideia da escassez social, fazem com que o conhecer e o agir se tornem reiterar o que se vê. Investiga-se aqui como a filosofia política de Mohandas Karamchand Gandhi, ao sedimentar interculturalmente tradições das perspectivas civilizatórias da Índia e do Ocidente pré ou não-moderno, está centrada na razão cognitiva e axiológica exercidas no controle do processo de formação da vontade, condição imperativa para a livre atividade política como demandada pela comunicação distribuída, sustentabilidade e cooperação; somente a descolonização que a agência individual faça em seu próprio território mental permite a configuração de novas, coletivas e soberanas vidas, carreiras, políticas, negócios, programas e projetos.Para isto recepciona-se trabalhos de autores diversos, que apresentam sincronicidade relevante, entre eles André Mattelart, Ashis Nandy, Boaventura de Souza Santos, Bruno Sciberras de Carvalho, Néstor Garcia Canclini, Henrique Antoun, Frantz Fanon, Joel Birman, Martín-Barbero e Terry Eagleton.
This paper advances the understanding that only a psychopolitics perspective,epistemically open to the sedimentation of traditions, allows overcomingthe effective epistemic privilege that moves the theories of progress andthe irresponsible of their psychic results, social and environmental, that aresupported by the Academy through its replication of rational choice theory and its post-modern movements that restrict the political and human reasonto the reified abstraction of the market and to the idea of social scarcity, makeknowing and acting become just to repeat what it’s seen. It is investigatedhere how the political philosophy of Mohandas Karamchand Gandhi, in settingup interculturally traditions from civilizing perspectives of India and the Westpre-modern or not, focuses on cognitive and axiological reason exercised incontrolling the formation process of the will mandatory requirement for free political activity as demanded by the distributed communication, cooperation and sustainability ; only decolonization that individual agency do in his ownmental territory allows the configuration of new, collective and sovereign lives,careers, politics, business, programs and projects. For this purpose, the articleworks with many authors who have relevant synchronicity, among them AndréMattelart, Ashis Nandy, Boaventura de Souza Santos, Bruno de CarvalhoSciberras, Nestor Garcia Canclini, Henrique Antoun, Frantz Fanon, Joel Birman,Martín-Barbero and Terry Eagleton.
1.-
O objetivo deste artigo é contribuir, no contexto do grupo de críticos do Ocidente moderno, para a superaçãodo privilégio epistémico vale dizer da colonização do território mental (do fluxo de pensamentos, afetos e percepções) (Ouriques, 2009b), que move as teorias do progresso (Ouriques, 2009a, 2010b) através da força globalizante do estado mental (Mattelart, 2003; Sadock,2009) chamado capital, com o apoio de uma visão científica e do mainstream mediático e pedagógico, eles mesmosa serviço desse estado mental, em missão que se supõe“civilizatória”, apesar de ser apenas um modelo de maximizaçãode oportunidades pessoais: a da teoria da escolha racional ,que, no pensamento liberal da Europa no séc. XVII e mais adiante do “utilitarismo”, entende a razão apenas como instrumental, quando a complexidade da experiência humana é definida de maneira reduzida e absoluta por uma constancia irreprimível de desejos, e posta, como “máquina individual”, a obter resultados por meio do cálculo frente a uma realidade que então se entende de escassez de recursos. Esta mentalidade, da qual vive-se hoje talvez o clímax, “afaz negligenciar a razão cognitiva ou axiológica fundamentada em princípios ou teorias sociais” (Carvalho, 2008:163), às quais logo voltarei. Como bem diz Nicholas Dirks: “Poderíamos nos tornar tão cúmplices dos deslocamentos da pós-modernidade que deixaríamos de reconhecer as continuidades informais entre o passado colonial e a atual nova ordem mundial?” (Dirks 1992:5); ou seja, seríamos capazes de ignorar ou subestimar suas continuidades psicopolíticas em nossos próprios territórios mentais, vale dizer no fluxo de nossos pensamentos, afetos(sentimentos, emoções, “coração”) e percepções (sensações,intuição, etc.)?A vida de Mohandas Karamchand Gandhi prova a potência política radical de uma agência individual , diante da estrutura social e imersa na multidão, quando ela é movida pelas citadas razão cognitiva e axiológica. Aproximando a crítica da teoria da escolha racional feita por Bruno Sciberrasde Carvalho, digo que é esta a opção que Gandhi faz: ele aceita “uma teoria ordinária pelo simples fato de que lhe parece justa, mesmo que ela não tenha relação com seus interesses pessoais” (Carvalho, 2008:163), ao mesmo tempo em quepercebe frequentes articulações desta teoria ordinária coma tradição, considera seu próprio potencial de autonomia, questiona de forma criativa as condições presentes, recusa-se a “entender o movimento histórico de uma forma determinada a priori” ( op. cit.:31) e age na abertura reflexiva existente “entre a esfera da agência individual e (…) [a] estrutura social (…) – até mesmo no ambiente competitivo de compartimentalização da racionalidade” ( id.:273).
É importante lembrar, como diz Carvalho, que é justamente a consideração do potencial de autonomía “o contraponto à expectativa da escolha racional de padronização da ação política e o fundamento da percepção analítica que recusa entender o movimento histórico de uma forma determinada a priori” ( id.:31). Portanto, é assim que o estímulo maior para mudar a fonte de referência do ato decisório, que determina a ação, é a clareza tangível dos resultados dos séculos de teorias do progresso ,que configuram a a irresponsabilidade psico-político-socio-econômico-ambiental, aliada aos impasses teóricos e práticosdos movimentos de libertação, neles incluídos a economia política, por basear-se também na tríade evolução/progresso/desenvolvimentismo, e por sua incapacidade de explicar, por estar compromissada apenas com a economia, o desafio da interconexão demandada pela sustentabilidade; e também os estudos culturais , quando comprometidos com as ilusões dopós-modernismo. Em relação aos estudos culturais , vale “uma observação sinistra” (Eagleton, 1998:130):
O conjunto de sua obra acerca do racismo e da etnicidade,da paranóia de pensar a identidade, dos perigos da totalidadee do medo da diferença: tudo isso, junto com seus insights aprofundados sobre as artimanhas do poder, sem dúvida revelar-se-ia de considerável valor. Mas seu relativismo cultural e seu convencionalismo moral, seu ceticismo, pragmatismo e bairrismo,seu desagrado com as ideias de solidariedade e organização, sua falta de qualquer teoria adequada de ação política: tudo isso ia depor muito contra ele. No confronto com seus adversários políticos, a esquerda, hoje mais do que nunca, precisa de sólidos fundamentos éticos e mesmo antropológicos: é provável que nada menos do que isso nos possa suprir dos recursos políticos quenecessitamos. E, nessa área, o pós-modernismo acaba sendo mais parte do problema do que da solução. ( op. cit.: 130)
É neste sentido que é decisivo, portanto, o entendimento da filosofia política proposta e praticada por Gandhi, não para escrever história, mas para identificar recursos políticos, que são sempre culturais e psíquicos (Nandy, 2001a), portanto psicopolíticos no sentido diferenciado aqui usado, capazes de intensificar a participação social libertadora de forma geral e, em especial, a da comunicação distribuída (Antoun, 2008), face tanto ao crescente “monitoramento,classificação e controle nos dispositivos de vigilância digital” (Bruno,2008:169) quanto à complexa gestão de si, sempre uma gestão da mente (Ouriques, 2007, 2009c), exigida à agência individual paraque ela desloque-se da atitude consumidora para a atitude de usuário, que implica em autonomia. Esta gestão de si é da dimensão de uma psicopolítica diferenciada, como disse, que fusione psicanálise, psicologia,estudos coloniais e também tradição (OURIQUES, 1975, 1992,2002, 2006, 2007, 2009a, 2009b, 2011), em especial em seus imensos recursos comprovados de autoconhecimento, para que seja possível experienciar de maneira não-dualista subjetivo e objetivo,tudo junto e misturado, como fez Gandhi, cujo segundo livro que mais leu depois da Bhagavad Gītā foi a Bíblia, cujo Sermão da Montanha o inspirou fortemente na adoção da não-violência (NANDY, 2011b:128): Tendemos a pensar o subjetivo como pertencendo ao self ,e o objetivo ao mundo. O subjetivo é uma questão de valor,enquanto o mundo é uma questão de fato. E como esses dois se juntam é, muitas vezes, um tanto misterioso. Ainda assim, uma das maneiras como convergem é no ato da auto-reflexão. Ou se prefere, nesse curioso salto mortal ou cambalhota para tras em que o self toma a si mesmo como objeto de conhecimento.A objetividade não é apenas uma condição fora do self . Naforma do auto-conhecimento, é a pré-condição de todo viverbem sucedido. Auto-conhecimento, fato e valor são questõesinseparáveis. (Eagleton, 2005:187) exatamente pelo esquecimento de que fato e valor são inseparáveis é que as ciências da psiquê e as ciências do social ainda estão muito separadas. O que resulta com que seja muito mais frequente e comum do que gostaríamos o fato que indivíduos, grupos, redes, movimentos e organizações apresentem atitudes antidemocráticas na maneira como conversam internamente,articulam suas ações intersetoriais e procuram mobilizar os segmentos sociais com os quais trabalham em favor da cidadania, da democracia,das políticas públicas sociais, das intervenções em comunidades e da responsabilidade socioambiental. Quando verificamos ao longo da História, e do presente, a extensão dos prejuízos causados por essas atitudes mentais para os movimentos de transformação social, podemos afirmar que se trata de uma alarmante pandemia no território mental, que pode ser superada apenas pela re-ligação dos saberes sobre a sociedade com aqueles sobre a economia psíquica dos indivíduos. (Ouriques, 2009:78)
Um exemplo significativo pode ser visto através do colapso do tradicional grupo de discussão formado para organizar os congressos hackers da série Hope, em 2001/2002, sob o impacto dos efeitos do atentado. Até o congresso de 2000, a lista de discussão capitaneada pelo grupo 2600 mantinha uma coesão em suas posições, mas, após o atentado, o grupo rachou, e os hackers a favor de cooperar com a guerra e os EUA contra os fanáticos e os comunistas vão se chocar violentamente com os libertarianos anárquicos e os vegetarianos indies contrários à guerra e ao Governo Bush. A lista naufragou em meio ao ódio, racismo e intolerância generalizados. (Antoun, 2008:18)
O sujeito da modernidade afirma sua vontade prometéica num vácuo de sua própria criação, vácuo que reduz a nada o funcionamento da própria vontade. Ao subjugar o mundo à sua volta, a vontade abole todos os constrangimentos à sua própria ação, mas, ato contínuo, erradica seus projetos heróicos. Quando tudo é permitido, nada tem valor. O self feito à imagem de um deus é o que mais se angustia na solidão.(Eagleton, 2005:294) Sob perspectiva distinta, a gestão de si feita porGandhi é a escolha continuada pela superação de si, do descondicionamento, por iniciativa da vontade, exercício e empreendimento de
operações planejadas para transmitir informações e indicadores selecionados para o público estrangeiro para influenciar suas emoções, motivações, raciocínio objetivo e, por fim o comportamento de governos estrangeiros, organizações, grupos e indivíduos; o objetivo é induzir ou reforçar atitudes e comportamentos estrangeiros favoráveis aos objetivos do emissor.
2.-
A pesquisa e a aplicação de reservas filosóficas presentes na perspectiva civilizatória da Índia, como prefere denominar lucidamente Dilip Loundo, no meu caso o pensamento-ação sintetizado e posto em prática por Gandhi, em aproximação intercultural, comodito, com elementos do Ocidente pré e não-moderno, é fazer vigorar a aliança epistêmica e política Sul-Sul, que permite a necessária reinvenção do pensamento e da ação, de maneira a reverter o citado quadro de colonização ou neocolonização do território mental ,colonizações em relação às quais muitos agradecem por acreditarem estar sendo levados para o desenvolvimento e por isto recusam o envolvimento ( id., 2009a, 2010b).
Frantz Fanon, como se sabe um dos intelectuais que mais trabalhou o tema da colonização política, ideológica e cultural, disse ao encerrar seu libro Os Condenados da Terra, prefaciado por JeanPaul Sartre:
Parafraseando Ashis Nandy (Nandy, 2011a:118), este fechamento alimenta o axioma de que a América Latina, Ásia e África são o que o Ocidente foi no passado e o que o Ocidente é hoje, e o quea América Latina, Ásia e África serão no futuro. Os resultadose as motivações de tal ciência do poder, com consequências sistêmicas nas ciências sociais, sincrônicos à mentalidade globalizada de “desenvolvimento” (em verdade de sequestro de futuro), são bem tangíveis. Ladislau Dowbor nos lembra de dados decisivos,espelhos da episteme que supõe ser perda de liberdade a decisão de dominar, pela gestão da mente, o processo da vontade:
Este epistemocídio é tão abrangente que “se alguém no Sul tenta defender o passado como um depositário de recursos culturais e tradições de conhecimento, isto torna-se nacionalismo cultural e romantismo. O único passado legítimo na cultura global do senso comum é o passado helênico” (op. cit:. 117). Dito de outra maneira, o mundo pós-colonial é aquele em que podemos viver depois do colonialismo, mas nunca sem ele. O colonialismo continua a viver sob maneiras que talvez tenhamos apenas começado a reconhecer. (…)Estamos diante dos deslocamentos extraordinários do colonialismo para os nossos sentidos de Self e de sociedade. (Dirks, 1992:23)
3.-
Em um de seus artigos, Ravindra Varma, presidente da Gandhi Peace Foundation, lembra que existem pelo menos quatro crenças sobre os códigos morais e éticos. Na primeira acredita-se que eles têm origem divina e que portanto são mandamentos; na segunda, entende-se que a violação de tais mandamentos implica na ira divina e atrai assim o castigo, o que cria uma relação de troca entre obediência e benesses (“são os frutos do Pu ya [mérito alcançado ao se viver eticamente] que os humanos buscam e não o Pu ya em si. Varma, 2003:20); na terceira, tais códigos têm a ver apenas com possíveis aspirações religiosase espirituais, sem terem nada a ver com a vida mundana; e na quarta, acredita-se que na medida em que tais códigos seriam divinos eles não precisariam ter suas bases lógicas investigadas.
Desta maneira, a verdade pela qual Gandhi referencia sua ação no mundo, a lei que formata e mantém o universo, corresponde,sob minha perspectiva, ao conceito amor encontrado por Humberto Maturana e Francisco Varela (Maturana & Varela,2001; Maturana & Verden-Zoller, 2004) como a base do biológico e do social, portanto como o
O vigor da reciprocidade, da ação desinteressada,vale dizer do amor e seus conexos, é o resultado da consciência, como dito, sim, pelo filósofo inglês DavidHume (de que quando se olha para dentro da própria mente não se encontra nada que seja puramente nós mesmos, em contraste com a percepção ou sensação de alguma outra coisa), mas compreendido sob outra perspectiva civilizatória. Este não-ser , que se para Eagleton é uma “lacuna sinistra ”e “ enervante vazio”, para Gandhi é o justamente o território onde encontra a verdade, o amor, a entrega, a interdependencia de tudo e de todos face à criação, face à Vida, da qual a História, para esta episteme, faz parte. Sim. A episteme de dentro da qual fala Gandhi entende a
e o enigma do mundo” (id.:283) é manifestar onipotência, mesmo que disfarçada pela ironia como traço modernista, pois para que
“o sujeito possa funcionar efetivamente nas ordens da reciprocidade e da lei (…) ele tem de perder e relativizar a
pela razão cognitiva e axiológica, vale dizer, pela tradição sedimentando-a, no sentido, para mim, de Martín-Barbero. Pois
Eagleton refere-se em um momento à própria perspectiva civilizatória da Índia: “Essa não é apenas uma visão moderna;
é também parte do ensinamento do sábio budista Nāgārjuna, para quem o self não tem essência porque está ligado
“entricheirar-se na alta cultura para desqualificar a mercantilização, a rapidez sem profundidade e a obsolescência
.
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