por LUCIA HELENA DE SÁ

O homem olvida-se da pureza, da beleza e da fecundidade da água, optando por uma lógica e uma ética instrumental que coisificam todos os seres e mercantilizam as relações humanas. Esquece-se de que o universo surge das águas, pois, no início, o espírito de Deus pairava sobre elas. A primeira imagem de Deus é a do vento do espírito — Ruah — que soprava sobre as águas. É a palavra de Deus que separa as águas dos rios que voam (imensa capacidade para estimular travessias) e das águas acima (nascentes que acolhem a memória adormecida e latente dos estados primordiais que nos originaram).

A propósito, a água transita entre fronteiras visíveis e invisíveis: para além das águas de superfícies, circulam despercebidos acima das nossas cabeças verdadeiros rios aéreos[1], poeticamente descritos como “rios voadores”; e, sob os nossos pés, resguardam-se as águas subterrâneas em lençóis freáticos e aquíferos.

Bachelardianamente, a água é matéria elementar, útero fecundo da diversidade da vida; é o elemento essencial que se metamorfoseia incessantemente na substância do ser; é via de purificações rituais que permitem renascimentos. Em todas as religiões e tradições culturais a água é emblema da suprema virtude (Lao-tse) e tem em si uma potencialidade energética que reproduz em pequena escala as grandes leis cósmicas (Theodor Schwenk). A orientação espacial dos vórtices da água visa o céu e as estrelas e seus movimentos internos imitam o sistema solar. Aludo, então, que a água — as águas acima e os rios voadores — tem um sentido simbólico que supera o sentido utilitário desenvolvimentista consumista.

As águas são os olhos da terra e urge vê-las bem para desvelar o predicado do nosso projeto civilizatório cujos termos precisos são reflexos da turvação da consciência contemporânea: poluição das águas, desmatamentos, desertificações, deslocamentos populacionais. A mesma força de degeneração que age nas mentalidades atua fora de nós, especialmente, quando se trata da água que, física e simbolicamente, ocupa 2/3 do planeta Terra e, também, do corpo dos seres humanos.

Dito isso, quero deixar claro que o Distrito Federal, localizado na região Centro-Oeste do Brasil, é o berço das águas que dão vida ao país. Os exorbitantes investimentos realizados águas abaixo (águas passadas não movem moinhos) não foram e não serão suficientes sem investimentos inteligentes águas acima na direção das nascentes. Assim sendo, o nosso grito revolucionário de hoje é preservar e plantar árvores, sobretudo as nativas, por toda parte para proteger as fontes e os mananciais que garantam a sobrevivência de todas as formas de vida das quais a espécie humana é apenas uma delas.

Sem vegetação não há água e se o Cerrado nosso brasileiro se extinguir, o fim dos rios e dos reservatórios será fato consumado. Desmatar a nascente implica que ela ficará exposta e poderá secar. Ora, o plantio de árvores nativas promove o revigoramento das nascentes e tudo o que elas propiciam de vida fluida, de nichos diversos e variados no mais profundo da terra onde somente as magistrais raízes das árvores cerratenses podem habitar.

Os especialistas de pensamento verdadeiramente sustentável têm de refletir sobre dois pontos: as condições de temperatura e umidade em uma dada região e as condições antropocêntricas que afetam o sistema mutante da água, causando ora bem-estar, ora carências no meio urbano, nas áreas rurais e, sobretudo, danos à Natureza. No que tange ao Distrito Federal, o abastecimento de água já é preocupação e já se estuda captar água de Corumbá IV, a 100km de distância, e mesmo do lago Paranoá que circunda a capital federal. O Distrito Federal contava cerca de 127 mil habitantes em 1960; hoje, há mais de 60 mil; em 2030, haverá em torno de 3.773.000 de pessoas. Disso se conclui que a oferta e o consumo de água no Distrito Federal têm relação direta com o povoamento, porém, os mananciais chegam ao seu limite. Não haverá volume d’água suficiente para atender a “Capital do Terceiro Milênio”.

Ademais o aumento populacional proporcionará, segundo Aldo Paviani (Professor Emérito da Universidade de Brasília), “[…] pressão sobre a já insuficiente oferta de trabalho […], sobre a infraestrutura como transporte coletivo, hospitais, escolas, universidades, habitação condigna, energia elétrica e, logicamente, a oferta de água potável.”. É lamentável que as gestões políticas do Distrito Federal tenham mantido o planejamento urbano separado da questão ambiental.

É evidente que a ocupação urbana causa impactos significativos ao ciclo hidrológico local, tendo como resultante disso a impermeabilização da superfície do terreno pelas coberturas de edificações, pavimentação de vias de acesso e áreas de estacionamento, implantação de calçadas e demais equipamentos urbanos. Para tudo isso ser construído, centenas de áreas verdes foram destruídas, ocasionando aumento do fluxo de escoamento superficial que resulta em inundações e enchentes; diminuição da infiltração que diminui a recarga dos aquíferos; aumento de carga de sedimentos que causa assoreamento dos cursos d’água receptores das águas pluviais; contaminação das águas superficiais (pela lavagem da superfície em ambiente urbano) entre distintas implicações insalubres. Outra questão censurável é a nossa cultura política não considerar, sistemática e consistentemente, o conceito de pegada ambiental de modo a avaliar o consumo e a conservação de recursos naturais e, por conseguinte, a manutenção sustentável das atividades.

O ambientalista José Gomes Garcia (2º Seminário Águas Acima: presente e futuro das nascentes, no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, 2016) indaga-se “[…] se, hoje, estamos no tempo da caverna. Um tipo outro de caverna na qual se misturam as de Platão e a de Saramago a nos deixar na escassez e excesso na mesma medida: insustentabilidade de nossas soberbas e enganos ao que nos dá vida — Água.”. Ainda estamos a lidar com o mesmo conceito anacrônico de que ter acesso à água significa ter propriedade desse recurso natural e esta medíocre mentalidade, por extensão, “[…] tem sido uma estratégia geopolítica eficaz para a manutenção da Geografia da invisibilidade e da ignorância espacial.”, segundo o Geógrafo Rafael Sanzio (1º Seminário Águas Acima: presente e futuro das nascentes, no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, 2015).

Em uma atitude autodestrutiva que semeia desertos, a governança brasileira, apesar de todos os avanços que a Ciência e a Tecnologia oportunizam, destruiu as possibilidades de renovação da água, interrompendo seu fluxo e seu abastecimento acirrado ainda mais pelas mudanças climáticas que têm afetado drasticamente a disponibilidade de água doce para as comunidades de vida e pela desorganização da urbanização crescente.

Há tempos, estamos a ver tal governança insuflada pela ganância e convencida da sua supremacia sobre a Natureza do território nacional; não reverencia a água — o petróleo azul do século XXI — crente que está na abundância perene do Rio São Francisco. Está, pois, guiada pela globalização a serviço (1) da lógica de uma economia de mercado hegemônico de consumo sem limites, acumulação do capital e de descartabilidade de produtos; (2) das tecnologias com alto potencial destrutivo para os ciclos naturais; (3) do modelo de desenvolvimento sustentado pela extrema desigualdade, corrupção e gente corruptível. Tudo isso está na base do desafio do povo brasileiro para o século XXI: plantar árvores, um valor democrático e solidário capaz de garantir a sustentabilidade da vida. Somente as árvores serão capazes de garantir a recarga dos lençóis freáticos e a manutenção do ciclo hidrológico.

Cabe salientar que, se o ciclo de renovação das águas apresenta-se equilibrado, o volume de água, que escoa dos rios para os oceanos, iguala-se ao volume de água evaporada dos oceanos que volta aos continentes por meio das chuvas. Quando a chuva atinge os campos e florestas — onde a capilaridade e a permeabilidade são mantidas pela vegetação —, a água da chuva se infiltra, escorre pelo solo permeável e mantém o nível natural dos rios e oceanos.

Nós, brasileiros, que temos em nosso território a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o Pantanal e o Cerrado, temos de ter em mente e em ação o que já aponta a Cúpula Intergovernamental sobre Mudança Climática que até 2050 a reposição dos lençóis freáticos diminuirá no Brasil em mais de 70%. Além do mais, o Brasil inundou 1% da superfície terrestre, provocando o deslocamento de milhares de pessoas, o que acarretou o desenraizamento dessas gentes das suas regiões, o empobrecimento e o aviltamento das suas culturas e modos de vida. Exemplo disso foi a construção faraônica, ainda inconclusa, da Usina de Belo Monte, no Pará, que continua a ser uma ameaça aos direitos humanos das populações ribeirinhas e ao direito à vida de milhares de espécies minerais, da fauna e da flora local, nem todas sequer conhecidas quanto mais estudadas que poderiam estar, hoje, sendo monitoradas.

O Estado brasileiro, não obstante os onerosos empreendimentos e mesmo diante do cenário previsto sobre o impacto das mudanças climáticas no Brasil que afeta, diretamente, o ciclo hidrológico e a vazão dos rios e lençóis freáticos, ignora alternativas sustentáveis como a eólica, a solar fotovoltaica, biogás e uso da biomassa a partir de rejeitos da agricultura.

As irregularidades climáticas que já sentimos no Distrito Federal deixarão, nos próximos anos, parte da população sem água se a indiferença dos cidadãos e descaso da gestão pública continuar. Apesar do ostracismo das políticas públicas, a visão transdisciplinar da água — que propicia um diálogo de saberes que permite superar o padrão utilitarista do consumo de água —, já vem sendo adotada em ações junto à comunidade como a Pedagogia de uma ideia em construção (do Ambientalista e Ativista Comunitário José Garcia), a Pedagogia da água (da Pedagoga Vera Catalão), o ABCerrado (da Antropóloga Rosângela Corrêa) e a Ecossociologia (de Eugênio Giovenardi).

Creio, lembrando Edgar Morin, que somente uma reforma de pensamento — na dimensão da noosfera onde habitam ideias, imaginação, representação de mundo — é possível operar mudança pela ecologia da ação que nos orienta à condição essencial para a biologia do amor de que fala Humberto Maturana de modo que possamos todos, de forma coletiva, atuarmos no cuidado essencial heideggeriano e devolvermos ao Cerrado as árvores que lhe pertencem e que zelam pela transparência, fluxo e limpidez da sua matriz perene de Vida: “santa Água benta” — águas acima volvidas a rios que voam.


[1] Doutora em Estética da Recepção e Teorias do Texto, Jornalista, Diretora de Produção, Agente Cultural e Sócia Académica do Instituto Galego de Estudos Internacionais e da Paz.

[2] A Amazônia é um imenso sistema de refrigeração de proporções gigantescas haja vista que, conforme pesquisas de Gerard e Margi Moss, uma única árvore frondosa de médio porte (copa de 10 metros de diâmetro) ou de grande porte (copa de 20 metros de diâmetro) pode evapotranspirar em um dia entre 300 e 1.100 litros de água respectivamente e que a floresta amazônica cede diariamente para a atmosfera em torno de 20 bilhões de toneladas de vapor de água.