“por Alexandre Brea Rodríguez”
“As nossas verdades não valem mais do que as dos nossos antepassados. Depois de ter substituído os seus mitos e os seus símbolos por conceitos, julgamo-nos mais “avançados”; mas esses mitos e esses símbolos não exprimem menos que os nossos conceitos. A Árvore da Vida, a Serpente, Eva e o Paraíso significam tanto como: Vida, Conhecimento, Tentação, Inconsciente. (…) e, se os deuses já não intervêm nos acontecimentos, nem por isso tais acontecimentos são mais explicáveis nem menos desconcertantes: apenas, um aparato de fórmulas substitui a pompa das antigas lendas, sem que por isso as constantes da vida humana se encontrem modificadas, pois a ciência não as apreende mais intimamente que os relatos poéticos.” – Emil Cioran.
Quando lhe comentei aos meus achegados que ia escrever um artigo com este título só obteve duas respostas, a dos que pareciam confusos pelo feito de juntar estas duas palavras numa mesma frase e a dos que o viam com naturalidade. Ademais, era capaz de saber previamente em que grupo estaria cada um deles. O que segue não é mais do que um compêndio das explicações que dei aos que não viam relação possível entre os dois conceitos.
Muitas pessoas vêem ciência e espiritualidade como antônimas, inimigas naturais numa guerra secular. Provavelmente tenham ajudado a esta visão numerosos capítulos da história onde uma determinada religião tratou de negar ou ocultar evidências científicas como o notório caso do heliocentrista Galileu Galilei e a repressão a que foi submetido por parte da Igreja Católica. Estes acontecimentos foram enfrentando os cientistas com os religiosos e desembocou em frases como “a ciência matou a Deus”.
Nos séculos XVIII e XIX semelhava que a física tinha solucionado todos os problemas aos que se enfrentara. Newton desenvolvera umas teorias satisfatórias da gravitação e da mecânica, que logo aperfeiçoaram Lagrange e Hamilton, e Clerk Maxwell unificara o eletromagnetismo. Neste contexto é normal o nascimento do positivismo filosófico, corrente anti-metafísica e que só tinha por válido o conhecimento empírico. Muitos dos integrantes deste movimento prognosticaram o progresso indefinido da ciência e da humanidade chegando à estendida crença do Demônio de Laplace, que diz:
“Podemos considerar o presente estado do universo como resultado do seu passado e a causa do seu futuro. Se um intelecto em certo momento tiver conhecimento de todas as forças que colocam a natureza em movimento, e a posição de todos os itens dos quais a natureza é composta, e se esse intelecto for grandioso o bastante para submeter tais dados à análise, ele incluiria numa única fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e também os do átomo mais diminutos; para tal intelecto nada seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria ao alcance dos seus olhos.” – Pierre-Simon Laplace
Mas passou o tempo e começaram a crescer as dúvidas sobre a veracidade das teorias científicas desenvolvidas até o momento com a chegada da relatividade e da física quântica.
-Só energia
O ano 1905 é conhecido como o annus mirabillis de Albert Einstein, pois foi neste ano no que sentou as bases da relatividade especial e formulou a sua explicação do efeito fotoelétrico, um dos primeiros achegamentos à física quântica. Seguramente E=mc2 seja uma das fórmulas científicas mais célebres e não é estranho dadas as incríveis implicações que tem. Certa quantidade de matéria, também cada um de nós, contém tanta energia como a sua massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado (aproximadamente 9 x 1016). Isto quer dizer que matéria e energia são intercambiáveis e que todos os objetos que compõem o nosso mundo não são mais que energia em forma de matéria. Somos energia.
Lembro uma conversa que teve anos atrás com um cientista sobre Deus. Ele me disse que para ele se Deus existia era precisamente essa energia, o motor que move o mundo. Esta visão é equivalente ao panteísmo: a energia está em cada planta, na água, na luz, em nós mesmos… Conforma e amolda o mundo.
É habitual falar de energia cinética quando um objeto se move ou, por exemplo, energia potencial quando está em presença dum determinado campo, como o gravitacional, mas são fundamentalmente o mesmo. Não há diferentes energias. Mesmo a nossa massa pode ser transformada em energia e ser empregada depois para qualquer propósito. Isto é precisamente o que sucede nas centrais nucleares ou numa explosão nuclear.
Neste verão tive a oportunidade de conversar com um engenheiro que trabalhara anos atrás numa central nuclear e fiquei profundamente impressionado com as suas palavras. Descreveu uma sala escura com uma imensa piscina e, submergido no seu interior, o reator. O material radioativo palpitava com um resplendor de cor azul pálido iluminando a estância. O processo para pôr em marcha o reator era extraordinariamente tenso. Ele quase podia sentir a energia vibrando retida no reator e capaz de arrasar vários quilómetros à redonda. Enquanto o ouvia, eu não podia deixar de ver a central como um imenso templo à energia.
“À vista da imensa harmonia do cosmos, que eu com a minha limitada capacidade de compreensão posso reconhecer, há quem diz que “Deus” não existe. O que me incomoda é que me citem para suportar os seus argumentos.” –Albert Einstein.
“É muito fácil crer que somos ondas e esquecer que também somos o oceano.” -Jon J. Muth
– O nada, uma perene potência de ser
Quando nos internamos nas profundidades da física quântica encontramos uma realidade profundamente diferente da que estamos acostumados a habitar, e fica na boca um sabor a paradoxo muito similar ao que deixa a filosofia oriental. Talvez o problema radique nas nossas ideias preconcebidas. É atribuído ao filósofo grego Parmênides o princípio metafísico segundo o qual o ser não pode começar a existir a partir do nada, mas a ciência vem de comprovar que isto é falso.
É bem conhecido que os átomos estão formados por um núcleo composto por nêutrons e prótons, com carga elétrica positiva, e elétrons com carga negativa a orbitar ao seu redor. Mas, precisamente por ser o elétron uma partícula carregada, teria que perder energia por radiação segundo a física clássica. Esta perda de energia faria que o elétron se precipitasse contra o núcleo e impossibilitaria a existência dos átomos. Mas os átomos existem.
Quando nos aproximamos a certos limites aparece a flutuação quântica para proporcionar uma força de repulsão que mantem aos elétrons em rádios de energia estável. O surpreendente é que não sabemos de onde vem essa energia. Podemos dizer que provém do vácuo, do nada, e essa “energia gratuíta” pode chegar a ser imensa. Não só surge energia do vácuo, dele também nascem constantemente partículas virtuais ou pares de partícula-antipartícula. Esta ideia pode resultar tremendamente difícil de aceitar mas é perfeitamente observável. Também resulta curiosa a origem etimológica da palavra nada: res nata, que significa “cousa nascida”. Alguma gente quer ver estas flutuações quânticas como uma espécie de intervenção divina que garanta que acima seja igual que abaixo, mas resulta ainda mais interessante extrair ao Deus criador do problema e ver a concordância das observações com a cosmogonia de certas correntes espirituais como o taoísmo. Tudo nasce do vazio indiferenciado, imensurável, insondável…
TAO TE CHING- XI
Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.
Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.
Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.
Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
Na utilidade do que lá não está.
–Se uma árvore cai numa floresta vazia, ela faz barulho?
No ano 1925 Werner Heisenberg enunciou o seu célebre princípio de incerteza. Resulta impossível conhecer num mesmo tempo a posição e o momento lineal (massa e velocidade) de uma partícula. Isto tem umas implicações realmente assombrosas. As partículas não descrevem trajetórias a nível microscópico e para descrever o seu comportamento temos que empregar funções de probabilidades. Este passo coloca um limite ao nosso conhecimento como observadores e, de acordo com a interpretação da maioria da comunidade científica, acaba com a visão puramente determinista da realidade.
Se uma árvore cair numa floresta vazia, ela faz barulho? A resposta pode parecer óbvia, uma árvore fará barulho ao cair ainda que não haja ninguém para ouvir esse ruído. Esta pergunta busca uma relação entre o observador e o comportamento do mundo e se a resposta fosse negativa mudaria por completo a nossa concepção da realidade. Mas o feito é que a nível quântico sucede precisamente isto, observar ou não um evento afeta o seu desenvolvimento!
Esta constatação chegou com o desenvolvimento da mecânica quântica. No ano 1801 Thomas Young resolveu temporalmente a discussão que iniciaram Newton e Huygens sobre a natureza ondulatória ou corpuscular da luz. Para isto construiu um dispositivo como o que se mostra na ilustração. Enviou a luz contra uma parede opaca com duas fendas e observou a imagem que se formava na pantalha (P). Se a luz fosse corpuscular atravessaria as fendas e na pantalha veríamos duas raias luminosas. Mas o que apareceu na pantalha foi um padrão de interferência com varias franjas luminosas separadas por franjas escuras como o que se vê em branco e negro à direita. Isto é característico do comportamento ondulatório e é resultado de que cada uma das duas fendas se converta num novo foco emissor e da interferência construtiva ou destrutiva das ondas emitidas por cada novo foco. Quando as ondas estão em fase aparece uma franja luminosa e quando estão em anti-fase restam-se as intensidades e aparece uma franja escura. A luz é, pois, uma onda.
Este feito não se discutiu até que Albert Einstein propôs a sua teoria da luz corpuscular como única explicação ao efeito fotoelétrico e se comprovou que a luz se comportava também como uma partícula. Isto é conhecido como a dualidade onda-partícula e não se reduz à luz, também sucede com partículas com massa. No ano 1961 repetiu-se a experiência que Young realizara com a luz, mas esta vez enviando elétrons contra uma dupla fenda. Por serem os elétrons partículas teriam que passar por uma fenda ou outra, continuar na sua trajetória e formar uma imagem com duas franjas luminosas na pantalha. Mas de novo se observou um patrão de interferência, os elétrons comportavam-se como uma onda. Isto também sucedeu ao enviar os elétrons um a um. As partículas passaram pólas duas fendas ao mesmo tempo e interferiram consigo mesmas como faria uma onda.
Colocou-se então um detetor para ver como passava pelas duas fendas simultaneamente cada elétron e o resultado da experiência cambiou. Os elétrons começaram a passar por uma ou outra fenda individualmente como se fossem só partículas e o padrão de interferência mudou a duas franjas luminosas. É dizer, o elétron começou a comportar-se de maneira diferente só pelo feito de estar a ser observado!
Isto é uma constatação de que a observação ou não observação do universo pode cambiar a maneira na que este se comporta. Este cambio no comportamento do elétron ao ser observado já fora predito por Richard Feynman e deve-se à natureza não determinista da física quântica e ao colapso da função de onda do elétron. A importância deste feito é imensa. As partículas movem-se de acordo a uma função de onda se não são observadas, mas no mesmo momento no que as observamos a função de onda colapsa e a partícula passa a ocupar um único ponto num processo instantâneo. Este colapso não foi ainda explicado pela física, mas constitui uma certeza de que o comportamento do universo depende de se for observado ou não. Em certo modo é como se o mundo não nos quisera revelar os seus segredos.
A título pessoal, sinalo que este comportamento pode entender-se como uma prova não só da nossa existência, mas da existência dos demais, já que a mudança no comportamento da realidade ao ser observada (por exemplo o colapso detalhado previamente) implica obrigatoriamente um observador. Eu posso ver esta mudança quando outro observa um processo. Admitindo isto estaríamos ante um enorme avance no conhecimento da nossa realidade, um corolário do cogito, ergo sum. Existo eu e existem os demais. A ética queda assim reforçada perante visões solipsistas.
-O mundo como espiral e o equilíbrio.
Quase a totalidade das culturas reparou nos ciclos naturais que segue o nosso mundo e cimentou neles a sua espiritualidade. As estações, o Sol, a Lua, as estrelas… Começaram a venerar o deus Sol, o rio, o mar, a terra e o resto de elementos da natureza. Talvez pareça uma espiritualidade primitiva, mas o próprio Cristo não deixa de ser uma deidade solar e a sua vida uma metáfora do movimento do Sol no céu. Tem assim 12 apóstolos (12 constelações), nasce de Virgo, morre na cruz (o sol desce aparentemente no céu ate ao dia 21 de Dezembro, sob a cruz do sul alcança o ponto mais baixo e três dias depois, em 25 de Dezembro, começa a perceber-se como os dias voltam a medrar). Diz-se assim, Cristo morre na cruz e após três dias renasce. A vida de Cristo resulta comum à de centos de deidades solares e a cruz celta conserva mesmo o disco solar. Que tem a dizer a ciência à veneração destes elementos naturais? Todos os resultados aos que chegou confirmaram a vital importância que têm para nós.
O comportamento cíclico na órbita e rotação da terra conhece-se hoje com precisão e muitos outros ciclos naturais foram estudados pela ciência, por exemplo o da água. Nós mesmos experimentamos os ciclos circadianos e hormonais do nosso corpo e o conceito repete-se inumeráveis vezes no comportamento físico dos materiais, no metabolismo…
Merece também especial menção o conceito de equilíbrio, tão empregado em todas as ramas científicas. Uma grande parte da termodinâmica se dedica ao estudo do equilíbrio da matéria. Há dois princípios de tremenda importância conceitual, o princípio de Le Châtelier e a lei de indução de Faraday, e ambos descrevem a oposição dum sistema ao cambio. A natureza gosta do equilíbrio.
Estes dois conceitos, equilíbrio e comportamento cíclico, estão presentes em disciplinas espirituais de todo o mundo. Talvez isto se deva a que são facilmente observáveis, mas são também fundamentais para o entendimento do universo desde qualquer ponto de vista.
Eclesiastes
[…] Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra permanece sempre.
Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao lugar de onde nasceu.
O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos.
Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; para onde sempre correram continuam os rios a correr.
Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; e não há nada novo debaixo do sol.
– Ciência e espiritualidade
Neste texto só se recolhem alguns dos muitos pontos de confluência entre as conclusões obtidas pela ciência e as obtidas por doutrinas espirituais de todo o mundo, mas ficam ainda inumeráveis temas por abordar. Poderia ser analisada, por exemplo, a semelhança conceitual entre a terceira lei de Newton (A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade) e a ideia do carma, ou a surpreendente capacidade que têm as matemáticas para descrever o comportamento do universo, a veneração pitagórica aos números, a música na mística, a presença dos números irracionais nas proporções dos seres vivos e no seu crescimento, o significado transcendental da presença destas constantes irracionais nas leis físicas…
É preciso também ter em conta as fronteiras do que a ciência pode chegar a conhecer e a incapacidade do método científico para demonstrar certas teorias que tratam de afundar na natureza do universo. Certos intelectuais sinalam que algumas teorias, como é o caso da célebre teoria de cordas, não são falseáveis e não podem ser consideradas cientificas seguindo o critério de Karl Popper. Estamos a nos adentrar, pois, nos domínios da fé na procura da verdade.
Em qualquer caso vemos que a ciência não é em absoluto incompatível com a espiritualidade e, de fato, há muitos pontos de confluência entre ambas. É importante para o reencontro deixar a um lado o fanatismo, as ideias e metáforas infantis e os dogmas, verdadeiros cárceres da espiritualidade.
Entretanto, o mundo segue a vibrar. Os nomes estão unicamente na nossa mente.
“O sentido da vida é dar-lhe à vida sentido” – Provérbio japonês.
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